15 de set. de 2011

Meia volta - volta e meia

 


quando foi embora, firmou os pés no chão e determinou-se a andar sempre em frente, sem olhar para trás, sem escolher os caminhos retos ou os tortos, pois só o que importava era seguir viagem sem rumo certo, perder os sentidos, perder os ouvidos, ficar entre os vivos, se perder por ai, mesmo que o destino estivesse obscuro e encoberto por névoas intransponíveis...

acreditava que nada poderia fazê-la retroceder, estava resolvida, pois de suave e doce tinha se tornado teimosa e arredia, porém não contava com aquela súbita dor que atravessou o vermelho do seu peito, uma dor causada pelo peso das coisas que, há tempos, ia aprisionando dentro dele.

precisava esvaziar a memória, exorcizar as imagens que seus olhos se negavam a lembrar, mas que ficaram cravadas na sua retina, e que a feriam com a crueldade de famintos escorpiões escondidos nas frestas das tralhas enferrujadas esquecidas nos fundos de velhos quintais.

foi então que se lembrou daquele lugar onde costumava abrir seu coração para deixar jorrar suas emoções, suas aflições, suas alegrias, seus amores e resolveu voltar, pois precisava falar, para que seus pulmões pudessem, novamente, respirar.

a saudade do amigo, o Poeta, que certa noite, já velho e cansado das mazelas desta vida, despiu-se do corpo que o limitava e atravessou para o “outro lado do caminho”, não necessariamente morto, mas irremediavelmente livre;

o céu que se abriu e derramou todas as suas águas sobre aquela montanha que se esvaiu em sangue e tingiu de rubro o mais belo Rio

(... e mulheres, homens , crianças - quantos? - , tornados pedra, lama, lixo e sobrevoados por abutres salivantes);

a infância ultrajada pela maldade dos muitos que se dizem os arautos de Deus;

a ganância que queima, arde e mata na floresta indefesa.

sobre tudo isso e muito mais queria falar.. .

mas quando abriu a porta, surpreendeu-se com tanto abandono, com tanto vazio, só ouvia os ruídos dos seus próprios passos, não havia braços para lhe dar um abraço, não havia rostos nem bocas para recebê-la com largos sorrisos...

só o silêncio, o silêncio, o silêncio...

e ela, perdida no meio do nada, não achou nenhum som que pudesse dar voz as suas palavras e quis, outra vez, fugir...

(pois só o que importava era perder os sentidos, perder os ouvidos, ficar entre os vivos, se perder por aí...)


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Seguindo em frente

 
Imagem: Brent Lynch


fechou a última mala e olhou em volta; só uma gente calada, escondida nas sombras. nenhum som, nenhuma palavra. não deveria ter voltado. tola, achou que poderia saciar sua sede de futuro na fonte do passado. porém estava enganada. não bastava querer. então bastava o quê? não sabia responder.

já passava da hora de partir. tinha um caminho a percorrer, um sentido a refazer. uma esperança nova no ar. quanto tempo vai durar? não tinha resposta.

sentia milhões de coisas e coisa nenhuma. sentia por tudo e por nada. sentia uma coisa abafada, nem de mágoa, nem de saudade. ficaria alguma ferida aberta? não tinha certeza...

desta vez não haveria despedidas e nem lágrimas. talvez um ou outro lamento, só pelo hábito e não por sentimento...

seguiria seu destino sem pressa por não ter aonde chegar. abriria aquela porta e iria embora, mesmo sem saber se era vida ou morte que a esperava lá fora. mas saber pra quê? quem se importa? não sabia dizer...

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O tempo não cura...

 
Imagem: tela de Francine Van Hove


sou assim, não tenho cura; as lembranças sempre me atravessam e me dilaceram.

faz tanto tempo e eu nunca me esqueci...

foi na última hora de uma madrugada de chuva e vento; eu o segurava forte junto ao peito e meu coração, já sem rumo, chorava tão alto, que ecoava naquele outro corpo, onde nada mais pulsava, onde só o silêncio imperava.

não tinha mais forças, não sabia como lutar contra a determinação da ausência e me deixei ali ficar, estática, com a minha perda tatuada na alma.

não sei quem o tirou dali, quem o levou de mim, deixando este eterno vazio entre os meus braços.

só sei que, desde então, eu nunca mais sorri por dentro.


(mas minto que sou feliz e minto tanto e com tanta veracidade, que até eu mesma, de vez em quando, consigo acreditar nessa tal felicidade, inventada só da boca pra fora).


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Do fundo do baú

 
alheia ao que me cerca,
ao que é fato, ao que é mentira,
estou dispersa, solta, só.
é inútil procurar por mim,
não consigo me encontrar.
não sei mais quem sou,
onde me perco, onde me acho.
mesmo distantes,
teus olhos ainda vejo,
me espreitando com desejo.
se mal me basto
para matar minha própria fome,
com que sobras vou alimentar
estes teus lábios salivantes?!

(junho 11, 2008)


em noites vazias,
(longas como a demora de bocas a espera do beijo)
só um som me ecoa
:o do amor que não ousa pronunciar o nome.
em noites assim,
de desejos sentidos e calados,
(de saudade esquartejada, de abraços amputados)
minhas letras se despem e
(nuas de poesia, de versos, de inspiração)
me amarram, me amordaçam e me emudecem.

só você meu amor com suas palavras,
ora ternas, ora canalhas,
pode me abrir o peito
e me resgatar de dentro de mim!...

(setembro 03, 2008)

* “O amor que não ousa dizer o nome” é uma frase de Oscar Wilde *
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5 de set. de 2011

Tempestade

 

alta madrugada e ela insone, aflita, rodeada de barracos se equilibrando sobre outros barracos, numa pinguela de abismo a muitos metros do chão, ignora o que se passa por trás da cortina de água...
lá embaixo, um bêbado também se equilibra nos passos, abraçado à garrafa vazia; havia bebido de tudo, para se lembrar e se esquecer, e agora se curva para vomitar a mistura.

do outro lado da rua, uma mulher, usando um vestido molhado, que mal lhe cobre o corpo de carnes fartas, fecha os olhos e deseja que a noite logo se faça dia, para que possa juntar suas coxas e gozar, enfim, o seu merecido repouso.

aqui e acolá acende-se uma luz, outra se apaga. bocas se procuram, pernas e braços se enlaçam, corpos se fundem. ecoam sons e gemidos de prazer e um ou outro lamento da desilusão do amor não realizado, da frustração do impotente, da sua desistência do sexo.

mas ela está alheia a tudo e a todos; com os olhos fixos vigia, reza a Ave Maria e implora que a tempestade não leve a montanha que está à sua frente e, com ela, toda aquela vida adjacente.


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2 de set. de 2011

Do fundo do baú II

 
Fujo da paixão
(não a quero mais)
mas sinto-a no meu encalço
seu hálito no meu pescoço
sua boca na minha pele
seu pulsar no meu peito
tento me esconder
(me encolho)
me pinto de negro
para enganá-la
suspendo a respiração
(para que não me ouça)
mas ela fareja
o cheiro do meu medo!

(julho 17, 2008)


um deslizar de língua
um roçar de dedos
o princípio de tudo
do despertar do desejo
ao êxtase absoluto

(maio 06, 2008)


Ao findar a madrugada,
restos de tudo e de nada;
falas marcadas por palavras gastas
e pontuações respiradas,
lençóis amarrotados,
um projeto mal esboçado de amor
e ela, apenas pele e osso,
uma alma atormentada
e as violetas que ele plantou
no seu pescoço.

( abril 20, 2008)

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